Na newsletter da semana passada, que tratou da saúde financeira do setor externo da economia brasileira, foi apontado que o país está convivendo com uma nova mudança na estrutura da pauta de suas exportações, e que desta feita, a mudança é em favor dos produtos básicos. Ao contrário das mudanças do passado, esta nova mudança vem acompanhada pelo temor de uma “especialização regressiva da economia nacional e de uma concentração de suas vendas externas em produtos de baixo valor agregado e baixa intensidade tecnológica”.
Neste espírito, qual foi, então, o processo de mudança estrutural da indústria brasileira nas últimas décadas que levou a esta especialização regressiva? O desafio desta newsletter (um pouco mais estendida do que as anteriores) é o de apresentar, de forma sintética, um quadro analítico para o tratamento desta questão, procurando estabelecer uma base de referência para se possa pensar o que está colocado no título deste mesmo Informe.
Em 2008 a economista Laura Barbosa de Carvalho defendeu sua dissertação de Mestrado no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, intitulada “Diversificação ou especialização: uma análise do processo de mudança estrutural da indústria brasileira nas últimas décadas”, dissertação que obteve o primeiro lugar no 31º Prêmio BNDES de Economia de 2009, prêmio concedido anualmente aos melhores trabalhos de economia publicados no país.
O argumento de Laura Carvalho é simples e objetivo. Após verificar o início prematuro do processo de especialização da estrutura industrial brasileira em relação ao observado para outros países, o trabalho de dissertação investigou os fatores explicativos de tal estratégia pela ótica da demanda. Segundo a economista, as mudanças na composição do valor adicionado industrial indicam que essa especialização é observada desde a primeira metade da década de 1990 e aprofundada nos anos 2000 com o ganho de peso dos setores que já respondiam por uma parcela elevada do produto industrial. Com base em três recortes temporais (1985-1990, 1990-1996 e 1996-2004), a decomposição do crescimento do valor adicionado e do emprego realizada a partir de matrizes de insumo-produto aponta para a falta de dinamismo da demanda doméstica e o processo de abertura comercial como os causadores do padrão de mudança estrutural observado.
Segundo Laura Carvalho, em uma visão de longo prazo da indústria brasileira, é possível identificar quatro fases distintas do crescimento industrial. Na primeira etapa, entre 1932 e 1962, a taxa média de crescimento da indústria atingiu cerca de 9% ao ano. Durante esse período, principalmente a partir dos anos 1950, intensificou-se o processo de industrialização por substituição de importações, que resultou em mudanças estruturais significativas da matriz industrial. Posteriormente, na segunda fase, o Brasil viveu o período do chamado “milagre econômico” (1967-1973), em que a produção industrial cresceu mais de 13% ao ano e o PIB, 12%. Nessa época, a substituição de importações foi aprofundada, possibilitando a incorporação de novos setores na indústria, especialmente as atividades produtoras de bens de capital.
No entanto, esse processo de crescimento da indústria foi revertido durante a década de 1980, quando a produção industrial teve péssimo desempenho e sofreu redução média de 2% ao ano. Por fim, na última fase esboçada, a década de 1990 foi caracterizada por modesta recuperação da indústria em relação à década anterior, mas com desempenho muito aquém do observado ao longo de todo o período do pós-guerra.
Buscando a literatura econômica que, de alguma forma, analisa a evolução recente da indústria nacional, Laura Carvalho referencia os seguintes autores. Bonelli e Gonçalves (1998) consideram que, durante as últimas duas décadas, o Brasil atravessou um processo de convergência para o padrão normal estimado para o conjunto dos outros países, tendo superado o viés pró-indústria herdado do período de substituição de importações. Em linha complementar de argumentação, autores como Ferreira (2005) e Canêdo-Pinheiro, Ferreira, Pessoa e Schymura (2007) defendem que a economia brasileira foi longe demais em seu processo de diversificação da estrutura produtiva, desviando recursos que poderiam ser utilizados para o crescimento de setores nos quais o país já apresentava vantagens comparativas comprovadas, desacelerando assim o desenvolvimento econômico. Segundo essa visão, não haveria qualquer justificativa para a utilização de instrumentos de política industrial vertical, ou seja, para a promoção de setores tidos como estratégicos para a economia. Ao contrário, esses autores acreditam que, em vez de procurar a diversificação da indústria, o país deveria ter-se voltado para a especialização nas atividades em que mostrava vantagens comparativas estáticas.
Laura Carvalho aponta também que a década de 1990 foi marcada no Brasil por dois choques competitivos: a liberalização econômica e a estabilização monetária. As reformas liberalizantes buscaram, em linhas gerais, a desregulação da economia, a liberalização do setor externo (redução de barreiras tarifárias e não tarifárias e abertura da conta de capital) e a privatização das indústrias de transformação e dos serviços de utilidade pública. Esse conjunto de medidas, combinado com as mudanças macroeconômicas que se seguiram ao Plano Real, estabeleceu um novo ambiente competitivo para a indústria brasileira: a indústria nacional passou a enfrentar um ambiente caracterizado pela sobrevalorização cambial, pelas taxas de juros elevadas e pela redução das barreiras à entrada de empresas estrangeiras.
Prosseguindo em sua abordagem, Laura Carvalho nos indica que após analisarem os impactos da liberalização sobre a composição e os níveis de produtividade da estrutura industrial brasileira, Ferraz, Kupfer e Lootty (2004) concluíram que, de maneira geral, a indústria doméstica se adaptou diferenciadamente às reformas da década de 1990, tornando-se mais competitiva em alguns casos. Entretanto, parte do aumento da produtividade na indústria teria decorrido, segundo os autores, da maior importação de insumos e bens intermediários, o que teria contribuído para o rompimento de alguns elos da cadeia produtiva no Brasil e, portanto, para a desestruturação da matriz industrial brasileira. Na realidade, como aponta Kupfer (2003), a liberalização comercial teria levado a uma modernização por via de simplificação de produtos e processos e de outsourcing de insumos, o que, por sua vez, teria gerado aumento no patamar da produtividade da indústria, mas não teria sido capaz de estimular o aumento sustentado desse patamar. Além disso, estaria havendo, em algum grau, uma especialização regressiva no padrão de comércio exterior, com aumento do peso de produtos mais simples nas exportações e de maior sofisticação nas importações.
Deste modo, observa Laura Carvalho, em linhas gerais, a visão convencional defende a idéia de que a especialização produtiva baseada em vantagens comparativas, qualquer que seja a sua natureza, é uma solução superior na promoção do bem-estar da sociedade. Por outro lado, os críticos dessa visão costumam considerar que os setores são distintos em suas capacidades de afetar uns aos outros e, portanto, o conjunto da economia, na medida em que diferem uns dos outros por meio de elasticidades-renda, elasticidades-preço, potencial de avanço tecnológico, entre outros aspectos. Sob esse ponto de vista, o padrão de especialização importa, e muito, tanto para o ritmo quanto para o próprio alcance do desenvolvimento econômico.
Mais recentemente, observa Laura Carvalho, a literatura vem explorando uma questão de natureza um pouco distinta. Ao menos em economias que ainda estão nas fases iniciais do desenvolvimento, algumas razões justificariam o fato de a especialização não ser a melhor trajetória de mudança estrutural em termos de seu impacto no desenvolvimento econômico, sendo a diversificação produtiva um caminho alternativo mais eficaz.
A controvérsia relacionada ao dilema estrutural entre especializar a estrutura produtiva em poucos setores e caminhar em direção a uma indústria mais diversificada tem estimulado a realização de grande número de estudos empíricos, alguns dos quais estão sendo bem-sucedidos no estabelecimento de fatos estilizados relevantes para o avanço do conhecimento sobre o tema.
Entre esses estudos, desponta o trabalho seminal de Imbs e Wacziarg (2003). Ao relacionar indicadores de concentração setorial da produção com valores de renda per capita de diversos países ao longo do tempo, os autores encontraram um padrão na trajetória de especialização da estrutura produtiva, em formato de U, que mostra que os países diversificam sua estrutura produtiva até atingirem um determinado nível da renda per capita, a partir do qual voltariam a se especializar. Além disso, conforme apresenta o estudo, o ponto de inflexão dessa trajetória equivale a um nível relativamente superior de renda per capita, levando à conclusão de que os países, em geral, só voltam a se especializar após conquistarem um alto grau de desenvolvimento.
A partir deste quadro de referência, e desenvolvendo seu trabalho empírico, Laura Carvalho chegou às seguintes conclusões:
“Baseando-se em regressões locais não paramétricas, correlacionando graus de especialização e diversificação estrutural com níveis de renda per capita de diversos países, levou-se à obtenção de curvas suaves com formato em U similares às encontradas por Imbs e Wacziarg (2003) para quase todos os países estudados, inclusive o Brasil (ver Gráfico 1 à frente, grifos desta newsletter). Porém, a comparação das trajetórias de diversificação e especialização seguidas por países como Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Coréia do Sul e Taiwan evidencia que a transição estrutural em direção à especialização na indústria brasileira se deu em níveis de renda per capita relativamente inferiores aos verificados nesses países.
Uma análise, no tempo, do processo de especialização da estrutura industrial brasileira em termos de valor adicionado indica que foi um processo iniciado na primeira metade da década de 1990 e aprofundado nos anos 2000, com o ganho de peso de alguns setores que já respondiam por uma parcela elevada do produto industrial. Além disso, uma análise superficial sugere que a intensidade tecnológica da estrutura industrial brasileira em termos da participação dos diversos setores no valor adicionado não vem aumentando nas últimas décadas, ao contrário do que ocorria no período de diversificação da indústria, trazendo um elemento a mais de preocupação.
Pela abertura comercial ou não, o fato de a inflexão da trajetória brasileira ter-se dado em níveis de renda per capita muito inferiores aos dos demais países estudados neste trabalho levanta a hipótese de que o processo de especialização da indústria está ocorrendo de forma precoce no país, por algum fator exógeno ao seu processo de desenvolvimento econômico. A investigação dessa hipótese motivou a realização do segundo estudo empírico deste trabalho, que por meio de uma análise de decomposição estrutural de dados de matrizes de insumo-produto brasileiras procurou atribuir às três grandes categorias de fatores (demanda doméstica, comércio exterior e mudança tecnológica) importância no processo recente de especialização da indústria.
Com base em três recortes temporais (1985-1990, 1990-1996 e 1996-2004), os resultados da decomposição do valor adicionado e do emprego industrial indicam que não foi um fator único a nortear a mudança estrutural da indústria brasileira nas últimas décadas. De modo geral, a combinação da falta de dinamismo da demanda doméstica com a abertura comercial parece ter sido determinante para a configuração de um processo de especialização e, mais especificamente, para a direção tomada por esse processo (setores ganhadores e perdedores de participação).
Na realidade, os resultados evidenciam um duplo efeito da liberalização comercial. Em um primeiro momento, o crescimento ou a redução diferenciada entre os setores no caso do emprego parecem ser explicados por um aumento no patamar da produtividade que pode ter sido consequência da competição dos produtos importados gerada pela abertura. Em um segundo momento, o efeito maior é sobre o comércio exterior, seja pelo lado das exportações, seja pelo lado da penetração das importações. Nesse sentido, parece evidente que, diante do baixo dinamismo da demanda doméstica, os setores que crescem mais são aqueles que exportam mais e sofrem menos com as importações.
Dessa forma, o processo de especialização da indústria brasileira pode ter sido mais passivo do que ativo, no sentido de que decorreu do baixo dinamismo da demanda e da economia brasileira em geral. Mais precisamente, ao contrário do que vem ocorrendo nos países asiáticos, o baixo nível de crescimento que tem caracterizado a nossa economia nas últimas décadas pode ter gerado uma certa rigidez estrutural na indústria nacional, além de ter favorecido a especialização em alguns setores. De fato, a estagnação econômica traz consigo um déficit de investimentos, o que naturalmente limita o desenvolvimento de novas atividades e o processo de mudança estrutural da indústria. Além disso, entre as atividades industriais existentes, em condições de baixo dinamismo, as que tendem a crescer proporcionalmente mais em participação são as que revelam um perfil de investimentos de retorno rápido e de baixo risco, em geral baseados exclusivamente em ativos tangíveis, como no caso dos bens de menor conteúdo tecnológico.”
Em resumo, o que se pode depreender é que estamos vivenciando um novo processo de mudança estrutural da indústria brasileira, que vem acompanhada pelo temor de uma “especialização regressiva da economia nacional e de uma concentração de suas vendas externas em produtos de baixo valor agregado e baixa intensidade tecnológica”. A questão importante a se colocar (e que é a do título desta newsletter) é a seguinte: qual será a estrutura industrial do Brasil na próxima década? O quê a nova Presidente da República tem a dizer sobre esta questão? Afinal, vamos privilegiar a especialização produtiva ou a diversificação produtiva de nossa estrutura industrial?