Na newsletter do dia 28/03/2021 iniciamos uma revisita aos trabalhos do advogado e economista Ignácio Rangel, e, de modo particular ao seu livro intitulado “A Inflação Brasileira”, publicado em 1963, e à sua reedição de 1978. Na newsletter do dia 04/04/2021 apontamos que o pensamento de Rangel se apoiava em dois conceitos: nos ciclos econômicos de longa duração e em sua dualidade básica. Naquela newsletter tratamos do primeiro conceito, e nesta apresentamos muito brevemente o segundo.
Para Rangel a dualidade é a lei fundamental da economia brasileira. Segundo ele: “A economia brasileira se rege basicamente, em todos os níveis, por duas ordens de leis tendenciais que imperam respectivamente no campo das relações internas de produção e no das relações externas de produção” (*). Tal definição define uma “arquitetura” da dualidade (ou uma formação dual) que se expressa através de dois polos constitutivos da economia (cada um com dois lados) (**):
Polo Interno: Lado Interno (com seu modo característico de produção)
Lado Externo (com seu modo característico de produção)
Polo Externo: Lado Interno (com seu modo característico de produção)
Lado Externo (com seu modo característico de produção)
Estes polos, por sua vez, obedecem a cinco “leis de funcionamento” que caracterizam sua dinâmica de evolução, ou de desenvolvimento, a saber:
Primeira lei: quando se cumprem as precondições para a passagem a um estágio superior – basicamente, quando as forças produtivas da sociedade crescem, entrando em conflito com as relações de produção existentes, consubstanciadas na dualidade básica –, esta (a dualidade básica, grifos nossos!) muda, como todas as formações sociais em tais casos, mas o faz apenas por um dos seus “polos”, guardando o outro sua estrutura e integrando-se na nova dualidade, correspondente ao estágio imediatamente superior do desenvolvimento (***);
Segunda lei: alternadamente, mudam o polo interno e o externo;
Terceira lei: o polo muda pelo processo de passar para o lado interno o modo de produção já presente no seu lado externo;
Quarta lei: consequentemente, o lado externo do polo em mudança muda, também, passando a adotar instituições características de um modo de produção mais avançado, que comporá nova união dialética (de contrários) com o lado recém-criado;
Quinta lei: como formação periférica que é, as mudanças da dualidade brasileira são provocadas por mudanças no comportamento do centro dinâmico em torno do qual gravita nossa economia, particularmente no que concerne ao quantum e aos termos de intercâmbio do seu comércio conosco.
É a Quinta lei que define a “engrenagem” de relacionamento da economia brasileira com o mundo externo. Segundo Rangel o Brasil reage de forma ativa e dinâmica às flutuações do ciclo longo (ciclos de Kondratieff já vistos), tanto ao produzir exportáveis nas fases de ascensão do ciclo, como ao substituir importações na fase de declínio dos ciclos.
Um aspecto relevante de ser notado é a análise que Rangel faz das relações de poder entre as elites dirigentes da sociedade brasileira nas transições de uma dualidade para a outra. Ele observa que os quatro lados dos dois polos da dualidade brasileira possuem, cada um, um modo de produção; contudo a definição dos “sócios maiores” e dos “sócios menores” varia em função da correlação de forças nas transições entre dualidades.
Adicionalmente, além da arquitetura dual, das leis de funcionamento, da “engrenagem” com o mundo externo, e das relações de poder para captura do Estado, Rangel incorpora à sua dualidade básica uma leitura das estruturas da economia do Brasil, a saber:
1. Economia natural ou pré-capitalista, estrato onde se encontra a maior parte da população do país e que predomina a produção para autoconsumo.
2. Economia de mercado capitalista (capitalismo europeu do século XIX), estrato no qual se encontra a indústria, os serviços e a agricultura voltada tanto para o mercado interno como externo. É o setor mais dinâmico da economia
3. Comércio externo ou setor resto do mundo, estrato que se caracteriza por fazer a ligação do país com o mercado externo. Utiliza técnica mais avançada do que a encontrada na economia nacional.
Em resumo, com este ferramental analítico sobre a economia brasileira, Rangel se apresentou no pensamento econômico nacional como um intelectual extremamente inovador. Sua contribuição, com tal modelo interpretativo, pode muito bem ser estendida para a compreensão de dualidades mais recentes (com o refino da Quarta e com o desenvolvimento da Quinta e Sexta Dualidades, correspondes aos Quinto e Sexto Ciclos de Kondratieff, bem como com a incorporação de outras teorias de ciclos, como a de Super-Cycles, de Hyman Minsky, para representar os avanços do setor financeiro mundial).
Por enquanto, nosso próximo desafio (para a próxima newsletter) é apresentar como Rangel interpretou a inflação brasileira no início dos anos 60, num contexto em que não tínhamos um setor financeiro minimamente estruturado (o Banco Central do Brasil só veio a ser criado em 1965), nem um mercado de capitais vigoroso.
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre os aspectos históricos e atualidades da inflação brasileira, não hesite em nos contatar!
(*) Rangel, Ignácio (1957). Dualidade Básica da Economia Brasileira. Instituto Superior de Estudos Brasileiros. É importante salientar que Rangel recebeu grande influência metodológica dos trabalhos de Karl Marx e John Maynard Keynes, particularmente.
(**) Adaptado de Rangel, Ignácio (1981). A história da dualidade brasileira. Revista de Economia Política. Vol. 1, no. 4, outubro-dezembro.
(***) Para apontar como a dinâmica da dualidade básica se manifesta historicamente, observe-se as arquiteturas a seguir (as fases apontadas são as fases que Rangel correspondeu aos ciclos longos de Kondratieff: fase A - ascensão e fase B - declínio):
Primeira Dualidade: (fase A: 1790-1815) (fase B: 1815-1848)
Polo Interno: Lado Interno (o escravismo) (Sócio maior-hegemônico nas relações de
poder: senhores de escravos)
Lado Externo (o feudalismo)
Polo Externo: Lado Interno (o capitalismo mercantil) (Sócio menor: burguesia
comerciante)
Lado Externo (o capitalismo industrial)
Segunda Dualidade: (fase A: 1848-1873) (fase B: 1873-1896)
Polo Interno: Lado Interno (feudalismo) (Sócio menor: fazendeiros comerciantes)
Lado Externo (capitalismo mercantil)
Polo Externo: Lado Interno (capitalismo mercantil) (Sócio maior: burguesia comerciante)
Lado Externo (capitalismo industrial do centro dinâmico)
Terceira Dualidade: (fase A: 1896-1920) (fase B: 1920-1948)
Polo Interno: Lado Interno (feudalismo) (Sócio maior: fazendeiros comerciantes)
Lado Externo (capitalismo mercantil)
Polo Externo: Lado Interno (capitalismo industrial) (Sócio menor: burguesia industrial
nascente)
Lado Externo (capitalismo financeiro)
Quarta Dualidade: (fase A: 1958-73) (fase B: 1973-1988, ou 1973-1998 – há uma controvérsia na literatura sobre quando Rangel demarcou a data final desta dualidade. Ademais, com sua morte em 1994, Rangel não pode visualizar a transição da Quarta para a Quinta Dualidade)
Polo Interno: Lado Interno (semi-salariato- bóias-frias, etc)
Lado Externo (semicapitalismo rural) (Sócio menor: nova burguesia rural)
Polo Externo: Lado Interno (capitalismo industrial) (Sócio maior: burguesia industrial)
Lado Externo (capitalismo financeiro – centro dinâmico mundial)