Na newsletter do dia 28/03/2021 iniciamos uma revisita aos trabalhos do advogado e economista Ignácio Rangel. Na newsletter de 04/04/2021 dissemos que sua interpretação do desenvolvimento econômico e político do Brasil estava apoiada nos conceitos dos “ciclos econômicos” (visto naquela mesma newsletter) e da sua teoria da “dualidade básica” (observada na newsletter do dia 11/04/2021). Nesta newsletter tratamos, de forma brevíssima (assumindo os riscos inerentes a uma síntese como esta), sua leitura inovadora sobre a inflação brasileira.
No prefácio à quinta edição ao livro “A Inflação Brasileira” produzido Ignácio Rangel (cuja primeira edição foi de 1963), Luiz Carlos Bresser Pereira afirma que este livro se tornou um clássico da Economia Política brasileira. Segundo Bresser Pereira, a análise teórica que ele realiza não apenas da inflação, mas de toda a economia brasileira, constitui um marco no pensamento econômico deste país (*).
Rangel inicia seu livro com uma crítica às visões contrastantes de monetaristas e estruturalistas acerca da inflação no Brasil. Segundo ele, os monetaristas não percebiam que o aumento dos preços, determinado por outras causas, era o que levava o governo a aumentar a quantidade de moeda, e não inverso. Já os estruturalistas, mesmo compreendendo o caráter endógeno da inflação, apontavam para inelasticidades da oferta, imaginando (tal como os monetaristas) que a inflação fosse de demanda (**).
Seu diagnóstico, então, era de que o que existia de fato no país era uma insuficiência crônica de demanda devido à má distribuição de renda. Esta má distribuição da renda, por seu turno, derivava, em primeiro lugar, da estrutura agrária baseada no latifúndio e no desemprego da mão-de-obra. Com a “expulsão” dos agricultores do campo, ao tempo em que a agricultura se modernizava, o problema se agravava. Ademais, o processo de industrialização em curso (baseado na substituição de importações) teria êxito sem uma prévia mudança da estrutura agrária.
O ciclo perverso da distribuição da renda levava a uma baixa propensão ao consumo. Em decorrência, havia capacidade ociosa em todos os setores da economia. Tais condições levaram Rangel a identificar um duplo processo no seio da economia. De um lado, como uma forma de defender seus ganhos diante da insuficiência da demanda, grandes empresas passaram a aumentar seus preços (impulsionando a inflação de custos). Por outro lado, devido à baixa propensão a consumir, a demanda agregada era compensada por uma elevação na taxa de imobilizações, prática utilizada pelas empresas e indivíduos como forma de defesa contra a desvalorização da moeda, e em aproveitamento de taxas baixas de juros.
Tal duplo processo, diagnosticava Rangel, levava à emissão de moeda para fazer frente aos aumentos de preços e à consequente redução da quantidade real de moeda. Ao emitir, o governo cobria seu déficit causado pelos aumentos autônomos de preços, e pela sua incapacidade de aumentar a carga tributária. Adicionalmente, governo fazia a inflação funcionar como um mecanismo de defesa da economia.
Em resumo, e como sintetizado por Bresser Pereira, o diagnóstico de Rangel da inflação brasileira como basicamente relacionada com a estrutura da distribuição da renda do país, sua verificação de que a inflação era de custos e não de demanda, e que a inflação como um todo era um mecanismo de defesa da economia em face a seus próprios desequilíbrios, inovaram radicalmente o pensamento econômico brasileiro.
Entretanto, Rangel não somente tinha análises e um diagnóstico inovador da inflação no Brasil. Ele tinha propostas, e propostas inovadoras, tema que nos remete ao presente e ao futuro do país (***). Mas isso fica para a próxima newsletter!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre os aspectos históricos e atualidades da inflação brasileira, não hesite em nos contatar!
(*) Importante lembrar para o leitor o contexto em que tal livro foi produzido. O Brasil não tinha um Banco Central- BC (que só veio a ser criado em 1965), tampouco um sistema financeiro estruturado e centralizado na órbita do BC. E o mundo vivia um período de agravamento das tensões geopolíticas no âmbito da chamada “Guerra Fria”, marcadamente entre os Estados Unidos e a União Soviética. Para mais detalhes sobre o ambiente econômico naquele período, e sobre a trajetória da inflação no Brasil até mais recentemente, ver o competente livro do Professor Affonso Censo Pastore, intitulado “Inflação e Crises: o papel da moeda”, Elsevier/Campus, 2015. Como complemento, aconselhamos uma leitura ao livro do Professor Gustavo Franco, intitulado “A Moeda e a Lei: Uma História Monetária Brasileira 1933-2013”. Editora Zahar, 2017.
(**) Adicionalmente, é necessário observar que mesmo tendo recebido grande influência do economista John Maynard Keynes, precisamos descontar o fato de que muito provavelmente Rangel não tinha um apropriado conhecimento das nuances do modelo Mundell-Fleming, desenvolvido pelos economistas Robert A. Mundell e J. Marcus Fleming (o modelo conhecido como IS-LM-BP), já que tal modelo estava começando a ser divulgado no início dos anos 60. Este modelo estendia o modelo macroeconômico keynesiano IS-LM (próprio de uma economia fechada) para uma pequena economia aberta. Tampouco Rangel demonstrou conhecimento sobre o modelo IS-TR, em que a Regra de Taylor (TR)(associada com inflation targeting – metas de inflação), devida ao economista John Taylor, substituiu no início dos anos 1990s a curva LM no modelo IS-LM.
(***) Nossa intenção é resgatar a forma como Ignácio Rangel pensou o desenvolvimento do Brasil, e de modo particular sua teoria da dualidade, para associarmos seu framework analítico às estratégias em estão em curso tanto na China (com a sua estratégia de “dual circulation” da Xinomics - de Xi Jinping) como nos EUA (com a estratégia da “two-track economy” da Bidenomics - de Joe Biden).