Com a newsletter do dia 28/03/2021 iniciamos uma revisita aos trabalhos do advogado e economista Ignácio Rangel. Na newsletter de 04/04/2021 dissemos que sua interpretação do desenvolvimento econômico e político do Brasil estava apoiada nos conceitos dos “ciclos econômicos” (visto naquela mesma newsletter) e da sua teoria da “dualidade básica” (tratada na newsletter do dia 11/04/2021). Na newsletter de 18/04/2021 apresentamos um brevíssimo relato de sua visão inovadora da inflação brasileira. Nesta newsletter apontamos que Rangel não somente tinha análises e um diagnóstico inovador da inflação no Brasil; ele tinha propostas inovadoras para a época, as quais dizem muito respeito ao atual momento brasileiro. 

Como sintetizado por Luiz Carlos Bresser Pereira (1), para reequilibrar a demanda em crise Rangel propunha, em primeiro lugar, reabrir o redesconto (2) aumentando a quantidade de moeda, ao mesmo tempo em que se fizesse um aumento dos salários reais. Em segundo lugar, o Estado deveria quebrar a máquina infernal dos oligopólios, controlando seus preços (3). Em terceiro lugar, o Estado deveria intervir diretamente na economia para montar um capitalismo financeiro que garantisse a acumulação de capital independentemente da inflação. Esse sistema financeiro teria como principal investidor e administrador o próprio Estado, mas um papel importante deveria ser reservado ao setor privado, agora sob o comando não mais do capital industrial, mas do capital financeiro.

Esta terceira proposta de Rangel viria se materializar (mesmo que parcialmente) no período do regime militar iniciado em 1964. Foi com o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) que se estabeleceu a reforma do sistema financeiro da época. Os principais mecanismos foram a Lei da Reforma Bancária, que deu origem ao Banco Central do Brasil, a organização do sistema financeiro e a implementação do instrumento da correção monetária, que possibilitou ao governo entrar no mercado de empréstimos e controlar melhor a política monetária através do open market, além da criação da Lei do Mercado de Capitais e o financiamento de empréstimos no exterior.

A sugestão de que a terceira proposta de Rangel foi implementada parcialmente diz respeito à forma como a reforma do sistema financeiro foi estabelecida. Ao invés de serem criados mecanismos para impulsionar o capital financeiro no país, estabelecendo condições para que uma poupança interna fosse gerada, e que esta fosse transformada em investimento (para financiamentos de curto e de longo prazos) através de um sistema financeiro privado dinâmico, o que se viu foi a criação de poupança pública forçada, através de instrumentos como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (base do então novo Sistema Financeiro da Habitação) e de programas de seguro social, como o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PASEP e o Programa de Integração Social – PIS (5).

Uma poupança endógena não-forçada, se criada, seria fundamental para resolver um dos gargalos principais da economia brasileira apontados por Rangel à época: o estrangulamento dos serviços públicos concedidos (6). Como ele apontava em 1963, esses serviços foram organizados no Brasil como serviços públicos concedidos a empresas estrangeiras, o que era natural, numa época em que não tínhamos nem indústria nacional de bens de capital, capaz de suprir os equipamentos e materiais necessários à sua instalação, nem mercado interno de valores, capaz de suprir os recursos financeiros para a compra daqueles bens de capital nacionais.

Segundo Rangel, esses serviços perderiam o caráter de concessão a empresas estrangeiras, passando a operar “nas condições do mercado monetário e de títulos interno”. Logo, a reorganização desses serviços estaria fadada a desempenhar relevantíssimo papel no processo de preparação de novas oportunidades de inversão, o que deveria suscitar nova demanda de capital, tornando a economia menos dependente da inflação. Essa reorganização teria, obrigatoriamente, que aguardar o aparecimento das duas condições necessárias: a) o aparecimento da indústria nacional de bens de capital e b) o aparecimento do mercado de valores.

Em 1978, no posfácio à quinta edição do seu livro, Rangel voltaria a tratar desse tema. Ele apontou que o problema da conversão das indústrias e serviços de utilidade pública em área ativa do sistema econômico não tinha obtido solução (marcadamente a equação econômico-financeira nela envolvida) (7), a não ser que fosse através da aplicação de recursos captados por via fiscal. E foi exatamente isso que aconteceu, já que o país passou a aplicar recursos fiscais correntes ou levantados no exterior, comprometendo recursos fiscais futuros (8).

Para concluir, depois de onze planos de controle da inflação (entre os anos de 1979 e 1992), que tinham como medidas principais o “congelamento de preços e salários”, o Plano Real de 1994 (que tinha como diagnóstico que o principal problema da inflação no Brasil era sua inércia, a qual a realimentava) propôs a âncora cambial como um mecanismo de mercado que se mostrou um efetivo remédio (junto a outros, como o controle fiscal) para o descontrole inflacionário.

No entanto, mesmo tendo resolvido a questão histórica da hiperinflação (e desta forma a sua estabilização), o Brasil infelizmente não conseguiu resolver um dos seus mais relevantes problemas dos últimos 40 anos: sua incapacidade de crescer economicamente de forma sustentada (9). Como temos mostrado reiteradamente nos últimos anos em aulas e palestras, desde 1980 o Brasil vinha apresentando um crescimento econômico bem abaixo de sua trajetória nas décadas anteriores (ver Figura 1 à frente), panorama fortemente agravado com as recessões de 2014 e 2020.

Mas o que toda essa revisita ao pensamento de Ignácio Rangel (desde a newsletter de 28/03/2021) tem a ver com o momento econômico atual Brasil? A tese da Creativante é a de que para pensarmos o Brasil de forma inovadora (enfrentando seus problemas atuais e apontando perspectivas para o futuro) nós precisamos estar preparados para três questões relevantes: a) Em primeiro lugar, entender as estratégias em estão em curso tanto na China (com a sua estratégia de “dual circulation” da Xinomics - de Xi Jinping) como nos EUA (com a estratégia da “two-track economy” da Bidenomics - de Joe Biden); b) Em segundo lugar, analisar o Brasil a partir de um framework econômico dual (daí o porquê do recurso à Ignácio Rangel); e, c) Finalmente, definir um posicionamento estratégico que esteja alinhado tanto com a “dual circulation” da Xinomics quanto com a “two-track economy” da Bidenomics.

Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre os aspectos históricos e atualidades da inflação brasileira, não hesite em nos contatar!

 

(1) No prefácio à quinta edição de “A Inflação Brasileira”, em 1986.

(2) O redesconto bancário é uma medida em que o Banco Central empresta dinheiro aos bancos comerciais, quando estes se encontram com poucos recursos. Como na época que Rangel havia escrito seu livro não havia Banco Central, este papel caberia ao Banco do Brasil.

(3) Esta proposta hoje seria considerada como radical e ineficaz (quando se constata, ex-post, a experiência dos fracassos das onze tentativas de controle da inflação a partir de planos, como o Plano Cruzado, até a chegada o Plano Real).

(4) Ver Pastore, Affonso Celso. “Inflação e Crises: o papel da moeda”, Elsevier/Campus, 2015.

(5) Outro fundo de poupança forçada foi o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, que veio a ser criado em 1990.

(6) No rol desses serviços estariam, por exemplo, os serviços de infraestrutura de energia elétrica, comunicações, estradas e transportes, água e saneamento, dentre outros.

(7) Problema agravado pelo fato de que muitos dos concessionários desses serviços, no pós-1964, passaram a ser providos por entidades estatais com pouca ou nenhuma transparência nos seus desempenhos econômico-financeiros.

(8) Tal escolha contribuiu para o aumento das dívidas pública e externa brasileiras, agravando ainda mais o problema da inflação, quando as taxas de juros dos empréstimos internacionais foram elevadas a partir de 1979. Esta questão de serviços concedidos só passou a ganhar importância no Governo Fernando Henrique Cardoso, quando foram promovidas reestruturações em alguns dos principais desses serviços, tais como os de energia elétrica, telecomunicações, via quebras de monopólios, privatizações e criação de agências regulatórias nestes setores.

(9) Para um relato sobre algumas das razões para o crescimento pífio do Brasil, ver Mendes, Marcos (2014). Por Que o Brasil Cresce Pouco? Elservier/Campus.

 

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