Já estamos quase ficando cansados de ouvir e ler registros de que estamos vivenciando grandes transformações. Apesar de repetitivos, tais registros detectam um verdadeiro fenômeno/sentimento da atualidade: a perenidade de tais transformações [logo, tudo que é sólido se desmancha no ar, como recuperou Marshall Berman, em seu livro de 1982 (*)].
Dentre tais transformações, uma não deixou de ser percebida, e está conquistando grande atenção por parte dos especialistas: a transformação da moeda, ou do dinheiro! Dentre tais especialistas, os economistas eram (até recentemente) aqueles mais vinculados ao tratamento da moeda e dos sistemas monetários.
Podemos aqui destacar, brevemente, os especialistas contemporâneos pioneiros que aprofundaram o estudo da moeda, tal como o economista austríaco Ludwig von Mises, com o seu livro de 1924 intitulado “The Theory of Money and Credit” (A Teoria da Moeda e Crédito), passando pela marcante obra do Prof. Milton Friedman (Prêmio Nobel de Economia de 1976) e Anna Schwartz, intitulada “A Monetary History of the United States” (A História Monetária dos Estados Unidos), de 1963, até chegarmos ao mais que oportuno livro do Prof. Lawrence White (Professor de Economia da George Mason University, nos EUA), que dá título a esta newsletter.
Logo de partida, o Prof. White assinala: “As questões motivadoras deste livro são diretas: dado que nossos herdados e discricionários regimes monetários fiat têm desempenhado imperfeitamente, e mais recentemente parecem ter piorado, pode um sistema alternativo – uma moeda mercadoria ou criptomoeda - fazer melhor? Se sim, qual alternativa é a mais promissora?”.
Para o Prof. White, tratar fiat, ouro e Bitcoin como padrões monetários alternativos é enfatizar o comportamento do poder de compra da unidade monetária, o qual inclui considerar a estrutura institucional da produção de moeda, na medida em que isto importa para a estabilidade financeira. Segundo ele, enquanto muito tem sido escrito nos anos recentes sobre o contraste entre Bitcoin e moeda fiat, tal como muito foi escrito numa era mais distante contrastando ouro e moeda fiat, relativamente pouco tem sido escrito para enfrentar a seguinte questão: um padrão Bitcoin oferece uma moeda melhor do que um padrão ouro?
Sendo assim ao longo de seis capítulos o Prof. White considera o concurso de três vias entre ouro (representando as moedas mercadorias em geral), fiat, e Bitcoin (representando as criptomoedas em geral). Desta forma, além da Introdução, o Capítulo 1 sumariza uma ampla varredura da história monetária, do escambo para a moeda mercadoria, para a troca do clássico padrão ouro internacional, e para os padrões fiat nacionais. Ele enfatiza o contraste entre a provisão de moeda por mercado e a provisão por governos, argumentando a partir da evidência histórica que a “state theory of money” (teoria estatal da moeda) é falsa: instituições do mercado deram surgimento à moeda e a ofertaram com sucesso em muitas formas.
O Capítulo 2 caminha através dos mecanismos de mercado que estimularam o padrão ouro, assumindo que um banco central era passivo ou ausente. O Capítulo 3 endereça equívocos sobre os sistemas padrão ouro. Uma exposição relativamente extensa dos mecanismos de um padrão fiat é apresentada no Capítulo 4, incluindo uma discussão do seu contraste para um padrão ouro.
No Capítulo 5 o autor examina os trabalhos da Bitcoin (as questões de demanda e de oferta), e no Capítulo 6 analisa seus contrastes para as moedas mercadoria e fiat, investigando complexas questões, a saber: a) como mecanismos de oferta criam diferenças na volatilidade do poder de compra; b) se a volatilidade do poder de compra da Bitcoin não será tão maior do que a do ouro num contexto de monetização completa; c) os obstáculos legais e de mercado para monetização da Bitcoin e do ouro; d) numa eventual degradação do fiat para alta inflação, o que os usuários de moeda escolherão como melhor moeda: ouro ou Bitcoin?; e) compara os custos de um padrão ouro com os custos de um padrão Bitcoin; f) analisa se a fixação no estoque da Bitcoin no longo prazo é um problema; e, finalmente, g) trata da questão do lastro para as moedas.
O Prof. White chega às suas conclusões com uma síntese diplomática, sem ser taxativo nos resultados encontrados. Ele aponta que é tentador dizer que tudo que é necessário para uma moeda melhor emergir é somente o que é necessário para melhores bens e serviços emergirem: liberdade para experimentação de mercado e seleção pelos consumidores. Para ele, a política pública poderia permitir liberdade simplesmente ao remover restrições à entrada ou saída. E avança: “Let a thousand currencies bloom, but do not artificially preserve any of them” (Permita que mil moedas floresçam, mas não preserve artificialmente qualquer uma delas).
É um bom conselho, defende o próprio Prof. White, mas não representa garantia para proteção de padrões fiat incumbentes contra padrões alternativos. Mas, reafirma, devemos estar alertas para o fato de que padrões monetários paralelos terão um tempo difícil para florescer, mesmo com livre entrada, exceto onde a taxa de inflação do fiat incumbente suba bem para dois dígitos.
Resumindo, apesar de ser um trabalho extremamente valioso, de folego, que aponta para várias questões complexas na comparação entre os três padrões monetários estudados, num timing mais que apurado, o que sentimos como ausente no seu esforço foi de um registro das respostas (tecnológicas em sua essência) que os bancos centrais (guardiões do padrão monetário fiat) de vários países do mundo estão dando ao desafio colocado pelas criptomoedas, com o desenvolvimento de suas CBDCs – Central Bank Digital Currencies.
No entendimento da Creativante, nós estamos no limiar de uma nova transição de padrão monetário, o qual é largamente influenciado pelo crescimento das tecnologias, protocolos, plataformas, ecossistemas, arquiteturas, ferramentas, processos, serviços e modelos de negócios da Era Digital. E na falta de um nome mais adequado estamos chamando este novo padrão de Padrão Monetário Tecnológico – PMT.
Adicionalmente, e pelo que estamos observando no desenvolvimento de algumas das CBDCs do mundo, fortemente apoiadas por complexos aparatos tecnológicos que demandam novas estruturas organizacionais e de governança, nada mais plausível em defender que estamos diante da emergência de uma nova função para a própria existência e utilização da moeda (além das três funções tradicionais de meio de troca, unidade de conta e reserva de valor), abrigando, por conseguinte, sua dimensão digital/tecnológica.
E a esta “quarta” função nós estamos denominando (na ausência de um termo melhor) “função de ser uma estrutura de barramento computacional” (para conectar componentes computacionais e transferir dados entre eles). O termo "estrutura de barramento" (bus structure) é aqui apropriado da Ciência da Computação (a bus is a subsystem that is used to connect computer components and transfer data between them). Logo, para qualquer projeto de moeda se tornar efetivamente uma moeda nesta Era Digital, ela há que cumprir as três funções tradicionais da moeda, além desta quarta função. Mas isto é tema para outra newsletter!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre “moedas melhores”, não hesite em nos contatar!
(*) Tudo que é sólido desmancha no ar é a obra mais conhecida do autor estadunidense Marshall Berman, configurando-se numa história crítica da modernidade. Este título alude a uma frase do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.