Neste final de agosto de 2024, nós, cidadãos residentes no território nacional, fomos impactados por uma medida judicial que baniu a plataforma digital X/Twitter de existir no espaço brasileiro, e, além disso, vinte milhões de seus usuários foram praticamente proibidos de acessá-la por meios como VPN (Virtual Private Network). Neste fato, entrelaçam-se figuras como as do empresário Elon Musk e do Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal - STF.
Ao lado destes dois nomes, um terceiro nome passou a se constituir numa referência do debate nacional: Pablo Marçal, empreendedor e coach goianiense (radicado em São Paulo), reconhecido conhecedor de técnicas modernas de marketing digital, que no momento de redação desta newsletter está se candidatando à Prefeitura da Cidade de São Paulo. Sendo assim, o que, afinal, vincula estes três nomes?
Estas três personalidades são um reflexo de um fenômeno que já foi analisado na literatura, mas que agora adquiriu uma nova roupagem: a cobertura da tecnologia digital! Ou seja, estamos vivenciando um fenômeno que é sofisticado, complexo, sutil, silencioso (que faz parte do mundo contemporâneo digital), e que denominamos como sendo “a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-econômicos digitais”. Tal colonização transforma, de forma substantiva, a “Esfera Pública” (esfera que media as relações entre o Estado e a Sociedade Civil) tal como a conhecemos, e isto tem sérias implicações para a Democracia.
E para entender estes termos, é necessário recorrer ao sociólogo e filósofo alemão Jürgen Habermas, através de duas de suas contribuições principais: a) O livro “The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society” (A Transformação Estrutural da Esfera Pública: Uma Investigação sobre uma Categoria de Sociedade Burguesa), publicado em 1962, na língua alemã, e somente traduzido e publicado para o inglês em 1989; e, b) Seu livro mais ousado [publicado em dois volumes: (I) “The Theory of Communication Action: Reason and the Rationalization of Society” (A Teoria do Agir Comunicativo: Razão e Racionalização da Sociedade), de 1981, em alemão, traduzido para o inglês em 1984; e, (II) “The Theory of Communicative Action: Lifeworld and System - A Critique of Functionalist Reason” (A Teoria da Ação Comunicativa: Mundo da Vida e Sistema – Uma Crítica da Razão Funcionalista), de 1981, em alemão, traduzido para o inglês em 1987] onde ele reconstrói um conceito de razão que não repousa em termos instrumentais ou objetivistas, mas sim em uma ação comunicativa emancipatória.
Esta newsletter já tratou sobre estas contribuições do Prof. Habermas em 2022, nas três partes a seguir indicadas: Parte I, de 30-10-2022; Parte II, de 06-11-2022; e, Parte Final, de 13-11-2022. Nestas newsletters apontamos que Habermas nos ensina sobre duas transições de chamada “esfera pública” (esfera onde a opinião pública é formada). A primeira foi a da transformação das sociedades feudais em uma ordem constitucional burguesa liberal que distinguiu dois domínios: o privado e o público. Além do domínio privado (dos indivíduos no âmbito particular), havia uma esfera pública burguesa para o debate político crítico-racional, que formou um novo fenômeno chamado “opinião pública”. A segunda transição foi da esfera pública burguesa liberal para a moderna sociedade de massa do Estado do Bem-estar Social, onde ganharam proeminência as grandes corporações da mídia tradicional (jornais, rádios e televisões, por exemplo).
Com os avanços científicos e tecnológicos (e seus impactos sociais, econômicos e políticos) recentes (e, particularmente o surgimento da Era Digital), estamos assistindo a uma terceira transição estrutural da esfera pública, a qual, tal como defendem Seeliger e Sevignani (2022) (*), é mediada por três desenvolvimentos institucionais: a digitalização, a comodificação e a globalização do social (detalhes nas newsletters apontadas acima).
Apesar da sua oportuníssima e inovadora contribuição, ao tratarem estes três desenvolvimentos institucionais, Seeliger e Sevignani (2022) deixam de considerar (ou de evidenciar com mais propriedade) um aspecto crucial e determinante da transformação estrutural em curso na esfera pública: a tecnificação digital dos sistemas sugeridos de forma inovadora por Habermas (o sistema econômico e o sistema administrativo/Estado) e sua intrusão no “dia a dia de nossas vidas”. Ou seja, ao lado do que Habermas denominou de “Colonisation of Lifeworld by the System” (Colonização do Mundo da Vida pelo Sistema), estamos observando uma complexa substituição dos “sistemas baseados em humanos” (que não escalam) por “sistemas baseados em tecnologia”, os quais podem escalar virtualmente sem limites. E o mais evidente destes sistemas de tecnificação digital são as “plataformas digitais” e seus associados “ecossistemas” (particularmente os das redes sociais), bem como as novas ferramentas de Inteligência Artificial - IA.
Sendo assim, Musk, Moraes e Marçal são o reflexo desta terceira mudança estrutural na esfera pública, onde ainda não estão completamente definidos os limites (éticos e morais), as regras (regulações), os protocolos (meios), e os impactos de como a opinião pública é formada. Como as tais plataformas digitais conformam um novo agente econômico, social e político, ainda não temos a devida clareza sobre como o seu poder de mercado (via concentração econômica) se transforma em poder político. Logo, nesta etapa transiente da esfera pública haveremos de conviver com alguns avanços/abusos e extrapolação dos limites que se consolidaram na primeira e segunda transformações estruturais da esfera pública, até que estabeleçamos consensos sobre novos valores, normas e práticas do conviver social, agora em escala global, online e real time!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre transformação estrutural da esfera pública, fique à vontade para nos contatar!
(*) Seeliger, Martin and Sebastian Sevignani (2022). A New Structural Transformation of the Public Sphere? An Introduction. Theory, Culture & Society. Vol 39(4) 3-16.