Nas partes 1, 2 e 3 desta série, anteriormente publicadas em 11/11/2024, 18/11/2024 e 25/11/2024, argumentamos que estamos ficando saturados de teorias, e teorias e modelos econômicos em particular, que já não estão ajudando muito na compreensão dos contextos que estamos vivenciando neste século XXI, e que isso pode ter muito a ver com o hiato entre tais teorias e modelos e a dinâmica das transformações nos contextos das realidades socioeconômicas de um mundo cada vez mais complexo, globalizado e integrado por redes, e agora mediado por relações tanto humanas quanto não-humanas (i.e., por algoritmos, assistentes e agentes inteligentes, processos automatizados, robôs etc.).
E para a defesa deste argumento, decidimos tomar como unidade de análise duas correntes do pensamento econômico brasileiro: ou seja, decidimos focar no debate entre aqueles que se identificam com o liberalismo neoclássico econômico e aqueles que se autointitulam como pertencentes ao campo do desenvolvimentismo econômico. Para tanto, a parte 2 desta desta série tratou dos principais pilares do pensamento econômico relacionados com o “mainstream econômico”, a parte 3 desta série lidou com o “desenvolvimentismo econômico”, e nesta newsletter começamos a avançar nossa visão informacionista do avanço (progresso) socioeconômico.
Que visão informacionista é esta? Ela parte de um conceito que praticamente foi perdido nos domínios do pensamento neoclássico econômico, que é a noção de Valor, que foi tão cara aos fundadores e propagadores do liberalismo clássico (já entre os desenvolvimentistas, tal conceito sequer é registrado, que dirá elaborado)!
Mesmo sem concordar com grande parte do que ela escreve e defende, não podemos ignorar o fato de que a economista Mariana Mazzucato tem o mérito de resgatar a análise do valor na economia contemporânea, a partir do seu livro intitulado “The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy” (O Valor de Tudo: Fazer e Tirar na Economia Global), publicado em 2018 (1).
Segundo a economista, este seu livro questiona as histórias que nos são contadas sobre quem são os criadores de riqueza no moderno capitalismo atual, histórias sobre quais atividades são produtivas em oposição às improdutivas, e, então, de onde vem a criação de valor. Ele (o livro) questiona o efeito que essas histórias têm tido na habilidade de poucos de extraírem mais da economia em nome da criação de valor.
Uma preocupação central da economista diz respeito ao papel do setor financeiro na economia. Segundo ela, até os anos 1960s, finanças não eram amplamente consideradas como uma “parte produtiva” (aspas da autora) da economia. Elas eram vistas como importantes para a transferência da riqueza existente, não como criando nova riqueza.
Nos anos 1970s, no entanto, salienta a economista, as coisas começaram a mudar. As contas nacionais – que oferecem um retrato estatístico do tamanho, composição e direção de uma economia – começaram a incluir o setor financeiro em seus cálculos do PIB, o valor total de bens e serviços produzidos pela economia em questão.
Hoje, acrescenta a economista, a questão não é somente o tamanho do setor financeiro, e como ele ultrapassou o crescimento da economia não-financeira (e.g. indústria), mas seu efeito no comportamento do resto da economia, a maior parte dos quais tem sido “financeirizada” (aspas da economista) (1).
Para a economista o valor pode ser definido em diferentes maneiras, mas no coração é a produção de novos bens e serviços. Como esses resultados são produzidos (a produção), como eles são compartilhados na economia (distribuição) e o que é feito com os ganhos que são criados a partir de sua produção (reinvestimento), são questões chave na definição do valor econômico (1).
Por “criação de valor” a economista entende os meios pelos quais diferentes tipos de recursos (humanos, físicos e intangíveis) são estabelecidos e interagem para produzir novos bens e serviços. Por “extração de valor” ela entende que são as atividades focadas em mover os recursos existentes e produtos, e ganhar desproporcionalmente do comércio assegurado (1).
Por um longo período a ideia de valor esteve no coração dos debates sobre a economia, produção e distribuição da renda resultante, e havia desacordos saudáveis sobre onde o valor residia na realidade. Para algumas escolas do pensamento econômico, o preço dos produtos resultava da oferta e da demanda, mas o valor daqueles produtos derivava da quantidade de trabalho que era necessário para produzir coisas, dos meios nos quais mudanças tecnológicas e organizacionais estavam afetando o trabalho, e das relações entre capital e trabalho (1)
Mais tarde, esta ênfase nas condições “objetivas” da produção, tecnologia e relações de poder foi substituída pelos conceitos de escassez e de “preferências” dos atores econômicos: a quantidade de trabalho ofertada era determinada pelas “preferências” dos trabalhadores por lazer sobre ganhar uma quantidade maior de dinheiro. O valor, em outras palavras, tornou-se “subjetivo” (1).
Esta mudança, do valor determinando preço para preço determinando valor, coincidiu com grandes mudanças sociais no fim do século 19. Esta narrativa da evolução do valor detalhada no livro da economista pode ser vista de forma sintética na Figura 1 à frente, retirada de uma de suas palestras sobre o livro. Ou seja, no século 17 a escola de pensamento dos mercantilistas acreditava que o valor provinha do comércio. No século 18 os fisiocratas acreditavam que o valor emanava da agricultura. No século 19 os clássicos inovaram defendendo que o valor surgia do trabalho humano. E, finalmente, no século 20 os economistas neoclássicos defendiam que o valor emergia das preferências dos consumidores e empresas.
E é aqui onde encerramos este resgate que a economista Mariana Mazzucato faz da evolução do valor na história do pensamento econômico. A partir daqui nos perguntamos: e como o valor é entendido atualmente? Como ele é criado? Como ele é entregue, e como ele é capturado?
A partir dos economistas neoclássicos o valor de um bem passou a ser determinado pela importância que um indivíduo coloca no bem para atingir seus fins desejados (ou seja, sua utilidade). Esta é a noção do “valor extrínseco”, que coloca que o valor não pode ser medido ou observado diretamente. Ao invés, os economistas desenharam um modo de inferir as utilidades relativas subjacentes da escolha observada, chamada “preferências reveladas”. E isto é revelado no mercado na interação entre produtores e consumidores maximizando suas funções utilidades (2).
Uma parte importante desta ideia de o “mercado definir o preço” é a lei dos grandes números. Quanto mais pessoas no mercado, mais perto nos aproximamos de alguma categoria de avaliação objetiva do bem. Logo, neste modelo alguma coisa não pode ter valor independente de alguém desejando a coisa. Ou seja, o valor de uma entidade não pode ser dependente de outra coisa, i.e., ela não pode ser dependente do contexto (2).
No entanto, todos hoje sabemos que o valor de algo, de fato, muda dependente do contexto, e o valor deve, necessariamente, algumas vezes ser completamente definido pelo contexto. Logo, a incorporação do contexto como um fator definidor do valor nos leva para um novo conceito que é o de “valor intrínseco” (2).
Sendo assim, o valor das coisas em suas relações com outras coisas, e, daí, sua dependência destas outras coisas (bens e serviços em rede, por exemplo), é o que se chama contexto. O contexto pode, de fato, ter algum valor e este pode adicionar ou subtrair valor para qualquer item individual dentro daquele contexto (2).
Nasce assim a ideia de “valor em conexões”. O valor está ou se encontra em como as coisas estão contextualizadas, culturalmente, socialmente, ambientalmente e tecnologicamente. E isto se dá porque a “rede” formada, a partir da qual estamos obtendo valor, está crescendo (2). Ou seja, o valor das coisas, dos bens, dos serviços, no mundo contemporâneo não se dá mais exclusivamente pelas preferências dos indivíduos, como pregado pelos economistas neoclássicos, mas também pelas conexões que os bens e os serviços desejados mantêm com outros bens e serviços (bens e serviços em rede). Esta é a noção de como o valor emana no mundo complexo e globalizado dos dias atuais: ou seja, é a “value network” (a rede de valor).
Mas a noção da “rede de valor” não surge de repente. Ela é o resultado de uma conjugação de fatores convergentes, marcadamente da confluência de novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e de novos modelos de negócios. Ela se origina, ou ganha mais sentido, com o conceito de “value chain” (cadeia de valor) nos negócios, e evolui transformando a economia e a sociedade.
Mas além de passarmos a lidar com esta “nova percepção de valor”, e de como ele emana, o que a sociedade está definindo como coisas de mais valor ou de menos valor? Na próxima newsletter vamos argumentar que dados, informação, conhecimento e discernimento são os principais bens e serviços (seja isoladamente ou se incorporando a outros bens e serviços, em rede) que estão conformando a economia e a sociedade neste século 21.
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre uma visão informacionista do avanço (ou progresso) socioeconômico, não hesite em nos contatar!
- Mazzucato, Mariana (2018). The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy. Penguin Books Ltd. Edição do Kindle.
- https://www.systemsinnovation.network/