Why Software Is Eating The World

Em artigo hoje famoso, publicado em 20/08/2011 no Wall Street Journal (um dos jornais mais influentes do mundo), com o título da epígrafe acima, Marc Andreessen (*) defendeu que “software estaria devorando o mundo”. Sua previsão era que empresas de software iriam causar amplas disrupções nas indústrias tradicionais, e desde então, temos visto que a ideia de que “toda empresa necessita se tornar uma empresa de software” passou a ser considerada quase como um clichê.

A frase/epígrafe acima não representa apenas mais uma tendência técnico/comercial, e neutra, do mundo dos negócios. Ela incorpora, e protagoniza, um fenômeno mais sofisticado, complexo, sutil e silencioso do mundo contemporâneo, e que iremos conceituar e argumentar como sendo “a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-econômicos digitais”. Tal colonização transforma de forma substantiva a “Esfera Pública” (esfera que media as relações entre o Estado e a Sociedade Civil) tal como a conhecemos, e isto tem sérias implicações para a Democracia.

Como vimos na newsletter da semana passada, a esfera pública foi pioneira e profundamente estudada, de forma inovadora, pelo Filósofo e Sociólogo alemão Jürgen Habermas. A partir dele passamos a entender que a esfera é a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos atores públicos e privados. Tal processo culmina na formação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade civil em direção aos governos no sentido de pressioná-los de acordo com seus anseios.

Para que chegássemos a tal entendimento, aprendemos com Habermas que a esfera pública sofreu duas grandes transições (tratadas na newsletter passada). Com os avanços científicos e tecnológicos (e seus impactos sociais, econômicos e políticos) recentes, estamos assistindo a uma nova transformação da esfera pública, a qual, tal como defendem Seeliger e Sevignani (2022), é mediada por três desenvolvimentos institucionais: a digitalização, a comodificação e a globalização do social.

Digitalização

Segundo estes autores, o modo como as esferas públicas são técnica e institucionalmente organizadas na forma de um “sistema de mídia” tem implicações para as possibilidades e qualidades da deliberação e formação de opinião. A mudança estrutural digital tem acontecido em processos interconectados de desintermediação e re-intermediação através de novas plataformas. Neste processo, o jornalismo profissional, e a mídia de massa tradicional estão crescentemente sendo bypassados (contornados) no seu papel de “gatekeepers” (guardiões) dos fluxos de comunicação pública, com a ajuda das novas mídias sociais e digitais. A mídia digital facilita acessos a públicos e contém a promessa da comunicação bidirecional. Como resultado do acesso facilitado, as esferas públicas se expandem, derretendo as fronteiras dos diferentes níveis de esfera pública entre indivíduos, grupo, e comunicação de massa – semipúblicos na interface com a esfera privada e questões pessoais. Esta expansão leva à pluralização das esferas públicas, à medida que a mídia individual ou comunicadores tendem a atingir alcance diminuído.

Comodificação (**)

Para os autores, a presente mudança estrutural da esfera pública, e suas implicações para a democracia, não podem ser entendidas somente com referência à tecnicamente mudada mídia de disseminação, nem somente ao considerar a economia política da mídia digital. A aparentemente profunda crise da representação política, como descolada de sua amarração à deliberação democrática, favorece o populismo. Em adição à descomodificação, no sentido de um deslocamento da esfera pública e da comunicação (tradicional), a comodificação (mercantilização) das arenas de comunicação, bem como dos comunicadores devem ser levados em consideração. Logo, tendências de instrumentalização política e exploração econômica da esfera pública podem ser observadas não somente no ambiente de trabalho, mas também no campo digital e na mídia social.

Globalização

Com respeito às funções normativas da esfera pública, o seguinte cenário emerge na opinião dos autores: no que se relaciona com a necessidade de transparência para a introspecção social, a globalização aumenta a complexidade dos fatos sociais para o mais alto grau. Se a sociedade funcionalmente diferenciada – na medida que isso aparente fazer senso, tendo em vista as interdependências transfronteiras - já representa um contexto que é difícil de entender em detalhe, mesmo para observadores equipados com conhecimento especializado, então a complexidade aumenta ainda mais na escala transnacional. As consequências relacionadas com a validação funcional da comunicação pública são ambivalentes. Um maior número de participantes pode aumentar a complexidade da constelação tanto quanto seu potencial de capacidade de resolver problema. A expansão do arcabouço socioespacial de referência requer uma multiplicação das preocupações alimentadas na esfera pública. O fato de que a observação mútua e confrontação dos diferentes compatriotas em um contexto transfronteiriço resulta em efeitos de socialização que tornam a “comunitarialização” transnacional provável não parece ser desprezível.

Ao tratarem estes três desenvolvimentos institucionais, Seeliger e Sevignani (2022) deixam de considerar (ou de evidenciar com mais propriedade) um aspecto crucial e determinante da transformação estrutural em curso na esfera pública: a tecnificação digital dos sistemas sugeridos de forma inovadora por Habermas (sistema econômico e sistema administrativo/Estado) e sua intrusão no “dia a dia de nossas vidas”, tal como indicado na Figura 1 à frente. Ou seja, ao lado do que Habermas denominou de “Colonisation of Lifeworld by the System” (Colonização do Mundo da Vida pelo Sistema), estamos observando uma complexa substituição dos “sistemas baseados em humanos” (que não escalam) por “sistemas baseados em tecnologia”, os quais podem escalar virtualmente sem limites (a citação do “software is eating the world” é a maior expressão deste fenômeno).

Na próxima newsletter daremos um fechamento ao argumento defendido nesta série sobre a transformação estrutural digital da esfera pública apontando para as oportunidades e para os riscos que tal transformação traz para a Democracia.

Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre a transformação digital da esfera pública, não hesite me nos contatar!

(*) Marc Andreessen, é um empresário norte-americano, criador do primeiro navegador comercial da Internet, o Netscape, e hoje um influente investidor em empresas de tecnologia.

Seeliger, Martin and Sebastian Sevignani (2022). A New Structural Transformation of the Public Sphere? An Introduction. Theory, Culture & Society. Vol 39(4) 3-16.

(**) O texto usa o termo “commodification”, traduzido aqui para comodificação, significando coisas não vendáveis se tornando vendáveis (ou seja, mercantilização). Já o termo “commoditization” (comumente traduzido para comoditização) significa coisas proprietárias se tornando genéricas.

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