Nas newsletters de a 30/10/2022 e de 06/11/2022 desenvolvemos o argumento de que estamos vivenciando um fenômeno sofisticado, complexo, sutil, silencioso e pouco compreendido do mundo contemporâneo, e que denominamos como sendo “a colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-econômicos digitais”. Tal colonização transforma, de forma substantiva, a “Esfera Pública” (esfera que media as relações entre o Estado e a Sociedade Civil) tal como a conhecemos, e isto tem sérias implicações para a Democracia.
Este argumento está alicerçado no framework analítico do Filósofo e Sociólogo alemão Jürgen Habermas, que apontou, de forma inovadora, o que constitui a “esfera pública”, e como ela já passou, em sua evolução histórica, por duas transformações estruturais (ver newsletter de 30/10/2022). Mas, como também vimos, estamos atravessando uma nova transformação estrutural da esfera pública, caracterizada por três desenvolvimentos institucionais (a digitalização, a comodificação e a globalização do social, ver newsletter de 06/11/2022), os quais contam com um importante catalisador: a tecnificação digital dos sistemas sugeridos por Habermas (o sistema econômico e o sistema administrativo/Estado) e sua intrusão no “dia a dia de nossas vidas”, tal como indicado na Figura 1 à frente (ver também um exercício-exemplo disto com o Facebook aqui).
E por que entender essa nova transformação estrutural da esfera pública é importante? A esfera pública é a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos atores públicos e privados. Tal processo culmina na formação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade civil em direção aos governos no sentido de pressioná-los de acordo com seus anseios.
Sendo assim, aqueles que se articulam (conectam, organizam e influenciam) melhor e pressionam mais, e de forma mais inteligente (fazendo uso das mais modernas ferramentas e artefatos tecnológicos, por exemplo), “competem” na arena democrática de forma diferenciada, conseguindo auferir mais vantagens e benefícios do que aqueles que se articulam, conectam, organizam e influenciam menos. É o que chamamos de “technology-biased democratic change” (mudança democrática viesada pela tecnologia). Este mecanismo preocupa, na medida em que estamos assistindo uma transição dos sistemas baseados em humanos (tal como os sistemas de confiança), que não escalam, para aqueles sistemas baseados em tecnologia, os quais podem escalar virtualmente sem limites (basta lembrar a citação do “software is eating the world”, como a maior expressão desta transição).
E como atenuar, ou mitigar, os efeitos perversos deste “círculo vicioso” da “technology-biased democratic change”? Isso não é tão simples, uma vez que o fenômeno é recente e ainda está em formação. No entanto, podemos iniciar tal tarefa fazendo uso das contribuições do cientista político e professor Francis Fukuyama, dentre as quais aquelas do seu livro intitulado “State-Building: Governance and World Order in the 21st Century”, publicado originalmente em 2004, e traduzido para o português em 2005, com o título “Construção de Estados: Governo e Organização no Século 21” (ver newsletters dos dias 04/09/2022 e a 11/09/2022).
A partir deste livro, o Prof. Fukuyama nos aponta que aqueles que buscam construir ou reconstruir sociedades (marcadamente os “outsiders”, ou seja, os “de fora”) enfrentam um conjunto difícil de trade-offs devido à desconfortável existência de um conflito, bem como uma complementaridade, entre “state-building” (construção de Estados) e promoção de democracia.
No centro da construção de estado está a criação de um governo que tem um monopólio legítimo do poder, e que é capaz de impor regras através do território do estado. Esta é razão pela qual a construção de estado sempre começa com a criação de forças militares e de polícia, ou a conversão das agências coercitivas do regime anterior em novas. A promoção da democracia liberal, por outro lado, envolve colocar limites nesse mesmo poder, de forma que ele seja disperso em localidades, seja limitado pela regra da lei, e, em última instância, seja sujeito à prestação de contas pública e ao consentimento popular.
Apesar da extensa pesquisa de Fukuyama nesta importante interface da construção de estado e promoção da democracia liberal, atuando principalmente na questão da capacidade do Estado (ou Estatidade – ver newsletters de 04/09/2022 e 11/09/2022), inclusive trabalhando tal tema no Brasil (ver pesquisa sobre o Brasil), somente nos últimos dois anos é que ele tem se debruçado sobre o impacto da tecnologia na Democracia [ver seu trabalho intitulado “Making the Internet Safe for Democracy” (Tornando a Internet Segura para a Democracia) e “The Future of Platform Power: Solving for a Moving Target” (O Futuro do Poder da Plataforma: Resolvendo para um Alvo Móvel)].
Segundo Fukuyama, o poder das grandes plataformas da Internet (também conhecidas como “Big Tech Companies” - BTCs) de amplificar ou silenciar certas vozes em escala, que podem alterar grandes resultados políticos, representa uma grave ameaça à Democracia. Os enfoques para reduzir este poder têm caído em quatro principais categorias: 1) Usar a legislação antitruste para quebrar/desmembrar companhias tais como Facebook (hoje Meta) e Google; 2) Regulação governamental do conteúdo; 3) Portabilidade de dados, ou empoderamento de usuários para mover seus dados entre plataformas; e, 4) Aplicar legislação de privacidade para limitar como as plataformas podem usar os dados que elas coletam. Segundo ele, cada um destes quatro enfoques é inadequado no seu próprio modo. Uma solução mais prometedora repousa em usar tanto tecnologia quanto regulação para terceirizar a curadoria do conteúdo das plataformas dominantes através de uma camada competitiva de “middleware companies” (empresas de uma camada intermediária).
Em resumo, como observado nesta série de newsletters sobre a transformação da esfera pública, argumentamos (ao usar um framework analítico Habermasiano) que estamos presenciando mais uma transformação estrutural dessa esfera através de uma complexa “colonização do mundo da vida pelos sistemas técnico-econômicos digitais”, cujo mecanismo denominamos de“technology-biased democratic change” (mudança democrática viesada pela tecnologia), o qual potencializa um círculo vicioso que impacta significativamente a Democracia. No epicentro desse mecanismo estão as hoje conhecidas BTC, contra as quais ainda não existem enfoques efetivos para redução do seu poder. Logo, reconstruir o Estado à luz dessa nova realidade é o desafio que se impõe!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre a transformação digital da esfera pública, não hesite em nos contatar!