Nas newsletters de 07-05-2023 e de 14-05-2023 defendemos que os processos de governança são políticos e envolvem exercícios de poder. Logo, apresentamos as principais características de um arcabouço de governança de ecossistemas digitais que se vale daquele apresentado por Clegg (1989) e adaptado por Ofe & Sandberg (2021), que chamamos de arcabouço COS.
Apontamos que o arcabouço COS (ilustrado na Figura 1 à frente) usa a metáfora da placa de circuito eletrônico e identifica três circuitos de poder: o episódico, o de integração social e o de integração sistêmica. Adicionalmente, apontamos que na dinâmica deste arcabouço, mudanças na governança de um ecossistema digital podem ser disparadas tanto exógena quanto endogenamente. Em seguida, mostramos como este arcabouço avança no exame do que chamamos de governança interna do ecossistema, mas identificamos que poderíamos estender tal arcabouço numa análise mais aprofundada da governança externa ao ecossistema.
Neste sentido, apropriamo-nos dos conceitos de integração horizontal e de integração vertical da área de Organização Industrial da Economia para examinarmos as estratégias de governança externa ao ecossistema. Mas para investigarmos a aplicação de tais conceitos, precisamos reconhecer algumas características idiossincráticas dos ecossistemas (e dos ecossistemas financeiros aqui focados: CeFi, DeFi e PlatFi).
No mundo da tecnologia Blockchain é fácil encontrar um debate sobre as principais características diferenciadoras das redes centralizadas e das redes descentralizadas. A Figura 2 à frente ilustra bem tais diferenças. Os ecossistemas centralizados se baseiam em redes centralizadas, significando que uma autoridade central está no controle dos dados e das funções da plataforma digital que dá os alicerces ao ecossistema. Logo, se você usa o padrão monetário fiat como meio de pagamentos, ou se você usa a plataforma do Facebook, então o Banco Central e a empresa Meta (controladora do Facebook) têm, respectivamente, o completo controle sobre os diferentes aspectos de suas características, incluindo a habilidade de quem pode e quem não pode se juntar às plataformas.
A ideia da descentralização (subjacente aos ecossistemas descentralizados) é relativamente nova no vocabulário dos negócios. Ela ganhou vida econômica a partir do lançamento da moeda criptografada da Bitcoin em 2009, a qual introduziu (para o grande público) o novo conceito que tornou a descentralização possível, ou seja, a tecnologia Blockchain. Aqui, se um usuário envia algo (um valor ou uma informação) para outro usuário, tal transação não passa por uma autoridade centralizada, e as transações são verificadas com o uso de algoritmos de consenso. A ideia da descentralização e o surgimento da Bitcoin e da Blockchain deram origem ao ecossistema DeFi, com múltiplas infraestruturas, serviços e aplicações que, de alguma forma, “mimetizam” o ecossistema CeFi na dimensão digital dos negócios descentralizados.
Completando a abordagem, temos o ecossistema PlatFi, formado pela inserção das grandes plataformas digitais, centralizadas e independentes (tais como Google, Apple, Mega, e Amazon, por exemplo), no setor financeiro. Como tratamos na newsletter de 31-10-2021, as plataformas centralizadas seguem um ciclo de vida previsível (identificado por Chris Dixon), que aqui vamos denominar de “plataformização tradicional”. Quando elas começam, elas fazem tudo que podem para recrutar usuários e complementadores externos, tais como desenvolvedores, negócios e organizações da mídia. Elas fazem isso para tornar seus serviços mais valiosos, à medida que as plataformas (por definição) são sistemas com efeitos de rede de múltiplos lados. À medida que a plataforma se move para cima na Curva-S de adoção, seu poder sobre os usuários e terceiros aumenta gradualmente. Ver Figura 3 à frente.
Quando elas atingem o topo da Curva-S, suas relações com os participantes da rede muda de um jogo positivo para um de soma zero. A forma mais fácil de continuar crescendo repousa em extrair dados dos usuários e em competir com os complementadores por audiências e lucros. Os históricos exemplos disso são Microsoft vs. Netscape, Google vs. Yelp, Facebook vs. Zynga, e Twitter vs. seus clientes. Sistemas operacionais como iOS e Android têm se comportado melhor, apesar de ainda pegarem uma saudável taxa de 30%, de rejeitarem aplicativos por razões arbitrárias, e subordinam a funcionalidade de aplicativos de terceiros a seu prazer.
Uma vez definidas as principais caraterísticas dos três ecossistemas financeiros apontados (CeFi, DeFi e PlatFi), ou seja, de centralização, descentralização e plataformização, como é possível identificar um arcabouço de governança externa que contemple tais características? E mais ainda, quais são os circuitos de poder que se estabelecem nas interações entre tais ecossistemas?
A proposta de arcabouço de governança que aqui se faz é a estender a metáfora dos circuitos elétricos para os relacionamentos entre diferentes formas de poder (usada no arcabouço COS, voltada para a governança interna dos ecossistemas) ao domínio da governança externa aos ecossistemas. Desta forma, tomando como exemplo a interação entre dois ecossistemas (ver Figura 4 à frente), assumimos que além das governanças internas dos respectivos ecossistemas, devemos aceitar a ideia de que a governança externa a estes ecossistemas é estabelecida através de trade-offs definidos por novos “circuitos” de poder.
No campo da eletricidade e da eletrônica existem basicamente três circuitos: em série, em paralelo, ou série paralelo, conhecido como circuito misto (temos também que considerar a possibilidade de não-circuito – ausência de qualquer circuito, e de curto-circuito – encerramento do circuito por falha de componentes, por exemplo). O circuito em série, como o próprio nome já diz, é um circuito com duas ou mais cargas que estão sendo alimentadas em série uma com a outra, ligadas em sequência, havendo apenas um único caminho para a passagem de corrente elétrica. Este circuito é aqui chamado de circuito de alinhamento, onde os dois ecossistemas desenvolvem ações, agenciamentos, “poder sobre” e resistência, tal qual no circuito episódico na governança interna. No entanto, no âmbito da governança externa, o alinhamento é estabelecido por negociações/barganhas e mecanismos de consenso. Nele o poder é derivado de capacidades de atração, retenção e monetização de novos agentes, o que implica em constante geração de mecanismos de incentivo para manutenção e expansão de sua base de agentes.
O circuito em paralelo também é composto por duas ou mais cargas, porém diferentemente do circuito em série, todas essas cargas possuem o mesmo ponto em comum, ou seja, há um ponto de derivação para todas elas, fazendo com que o fluxo da corrente elétrica separe proporcionalmente para cada carga, de acordo com o valor de sua resistência. Este circuito é chamado de circuito paralelo, onde os ecossistemas desenvolvessem suas ações independentemente, com estruturas de poder autônomas, apesar de serem alimentados pelas mesmas fontes.
Já o circuito série paralelo incorpora características combinadas do circuito em série com as do circuito em paralelo. Um exemplo marcante desta combinação é a possibilidade da utilização de redes blockchain permissionadas (que necessitam de permissão para serem usadas) e não-permissionadas, privadas e públicas.
Uma vez reconhecidos os circuitos que podem identificados nos processos de governança, os quais são políticos e envolvem exercícios de poder, cabe investigar como são estruturadas as outras camadas complementares ou componíveis (tais como as de tokenização, design de contratos e de mercados, financiamento, dentre outras) que compõem a missão dos ecossistemas digitais (ao lado da definição das estratégias já apontadas de integração horizontal ou vertical, e de competição, coopeticão e componibilidade), e especificamente dos ecossistemas financeiros digitais.
E para este fim, o arcabouço aqui proposto sugere a utilização do arcabouço desenvolvido pela economista Cathy Barrera, fundadora da empresa Prysm Group. Este arcabouço, visto na Figura 5 à frente, especifica cinco camadas para a análise de sistemas baseados na tecnologia Blockchain, e ilustra de forma consistente as camadas que são tratadas por aquela camada da governança (camada esta que tratamos ao longo de três últimas newsletters). Todavia, a aplicação deste arcabouço deve levar em conta um maior aprofundamento do que é, na realidade, um ecossistema digital e como serviços de ecossistemas digitais – digital ecosystem services – se estruturam (diferentemente dos não digitais), e como eles funcionam (tema para as próximas newsletters).
Em resumo, o desafio de estabelecer a governança de ecossistemas financeiros baseados em plataformas digitais não é algo simples, e implica na identificação de circuitos complexos de exercício de poder, ao lado do design e da operação de complexas camadas de tecnologia e modelos de negócios. Espera-se que com o arcabouço aqui desenvolvido uma parte dessa complexidade tenha sido desvendada!
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre arcabouços para governança de ecossistema financeiros baseados em plataformas digitais, não hesite em nos contatar!