Nas partes 1, 2, 3 e 4 desta série, anteriormente publicadas em 11/11/2024, 18/11/2024, 25/11/2024 e 02/12/2024, argumentamos que estamos ficando saturados de teorias, e teorias e modelos econômicos em particular, que já não estão ajudando muito na compreensão dos contextos que estamos vivenciando neste século XXI, e que isso pode ter muito a ver com o hiato entre tais teorias e modelos e a dinâmica das transformações nos contextos das realidades socioeconômicas de um mundo cada vez mais complexo, globalizado e integrado por redes, e agora mediado por relações tanto humanas quanto não-humanas (i.e., por algoritmos, assistentes e agentes inteligentes, processos automatizados, robôs etc.).
Vimos na newsletter passada que na transição para este século a noção de “valor” tem migrado de um conceito subjetivo das “preferências do consumidor” (cara os economistas neoclássicos) para o conceito mais objetivo de “rede de valor” (value network). Ou seja, diferentemente de outras etapas históricas, “a criação (e relacionadas entrega e captura) de valor” se dá hoje através da estruturação de “redes de valor” para produção e consumo de bens e serviços. Esta visão é mais aderente ao contexto atual, que é resultado de uma conjugação de fatores convergentes, marcadamente da confluência de novas e disruptivas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e de novos modelos de negócios.
Todavia, a noção de “rede de valor” não surge de repente. Ela se origina com o conceito de “value chain” (cadeia de valor) nos negócios, e evolui transformando a economia e a sociedade. O conceito de “value chain” emerge na literatura dos negócios através do economista Michael Porter em seus estudos sobre vantagem competitiva (Figura 1).
Ele, o conceito, é entendido como uma ferramenta para compreender como as empresas criam e sustentam valor para seus consumidores e como maximizá-lo, de forma que a “cadeia de valor” se torne a fonte da vantagem competitiva. Ela é formada por várias atividades estratégicas, as quais são úteis para entregar produtos e serviços de valor para o mercado (1).
As atividades da cadeia de valor são divididas em dois tipos – cinco primárias e quatro atividades de suporte, onde cada empresa tem componentes físicos e processos. De um lado, as categorias genéricas de atividades primárias são envolvidas na criação física e entrega de produtos para os consumidores, e cada categoria pode ser dividida em várias atividades específicas como uma função da estratégia da indústria e da empresa. Elas são: (1) Inbound Logistics (Logística de Recebimento/Entrada), diz respeito à oferta de materiais; (2) Operações, relacionadas com a transformação de insumos em produtos finais; (3) Outbound Logistics (Logística de Entrega/Saída), diz respeito à distribuição do produto; (4) Marketing e Vendas, associadas com as atividades de propaganda, promoção, seleção de canais, precificação, etc; e, (5) Serviços, com atividades que reforçam ou mantêm o valor dos produtos (1).
Por outro lado, as atividades de suporte estão envolvidas em sustentarem aquelas primárias. Elas são: (1) Procurement (compras, suprimentos), relacionadas com a compra de insumos para toda a cadeia de valor; (2) Desenvolvimento de Tecnologia, aqui estão as atividades com o escopo de melhorar tanto o produto quanto o processo; (3) Gestão de Recursos Humanos, consistindo de atividades de recrutamento, contratação, treinamento, desenvolvimento de pessoas e também remuneração; e, (4) Infraestrutura da Empresa, a qual inclui atividades tais como contabilidade, gestão geral, finanças, planejamento, jurídico, gestão de qualidade, etc. Os dois tipos de vantagens competitivas obteníveis pela cadeia de valor são vantagem de custo e diferenciação (1).
Apesar de sua lógica conceitual, o conceito de cadeia de valor sofreu evoluções (2). Enquanto na cadeia de valor há uma lógica sequencial e linear para a organização dos processos de forma a atingir a criação de valor, no conceito mais fluido de rede de valor o processo não tem uma ordem rígida, mas opera ao mesmo tempo em uma rede no interior da qual há também organizações externas colaborando para o processo. Desta forma, a competição de hoje não é mais entre empresas analisadas pela cadeia de valor, mas entre redes de organizações analisadas pela rede de valor (1).
Ou seja, na lógica da rede de valor há também, ao lado das atividades fundamentais, os conceitos de stakeholders, redes de inovação aberta e relacionamentos. Um dos guias fundamentais desta evolução é a mudança no comportamento dos consumidores, à medida que eles não somente compram da forma tradicional, i.e., em lojas ou armazéns, mas eles podem também usar outros canais conectados à web (Internet) (1).
Desta forma, nós chegamos à Era da Internet, ou da Era Digital, se preferirem, onde, desde a segunda metade do século passado, foram criados os alicerces para a estruturação das redes de valor modernas através das redes de computadores, que deram origem à Economia das Redes, e finalmente, à Economia Digital e à Sociedade Digital dos dias atuais.
E qual foi a grande transformação com a chegada da Internet? A cadeia de valor de qualquer mercado ao consumidor é dividida em três partes: fornecedores, distribuidores e consumidores/usuários. A melhor maneira de obter lucros extraordinários em qualquer desses mercados é tanto conquistar uma posição de monopólio horizontal em uma dessas três partes, ou integrar duas das partes, de forma que se tenha uma vantagem competitiva em entregar uma solução vertical. Na era pré-Internet a última alternativa dependia do controle da distribuição. A disrupção fundamental da Internet tem sido “virar esta dinâmica de cabeça-para-baixo”. Primeiramente, a Internet tem livre distribuição (de bens digitais), neutralizando a vantagem que os distribuidores pré-Internet alavancaram para integrar com os fornecedores. Em segundo lugar, a Internet tem levado os custos transacionais a zero, tornando viável para um distribuidor integrar para frente com consumidores/usuários em escala. Em terceiro lugar, com o avanço recente da Web 3.0, e de novas infraestruturas (i.e., blockchain) e modelos de negócios, estamos adentrando também a era dos “agregadores de atividades e serviços” aprofundando ainda mais a noção de “rede de valor”.
Como temos argumentado já há algum tempo, “a economia não está em transformação digital, ela já foi transformada!” (3). E para corroborar esta tese, basta observar os dados apresentados nas figuras indicadas a seguir. Na Figura 2 apontamos que dos mais de 8 bilhões de habitantes no planeta, quase 6 bilhões já são assinantes de fones móveis digitais únicos, mais de 5 bilhões já usam a Internet, e mais de 5 bilhões são usuários únicos de mídias sociais. Na Figura 3 mostramos que, na linha de tempo de uso da Internet, sua trajetória é crescente. E, na Figura 4, indicamos que o Brasil se encontra acima da média mundial de indivíduos usando a Internet como percentagem da população mundial.
Mas o que este novo contexto de economia e sociedade eminentemente digitais nos proporciona de novidade em termos históricos, ou seja, em termos de evolução da humanidade? Este contexto inaugura, ou desvenda, um novo modo de produção, e de distribuição, que difere (ou inova, numa conceituação mais branda) dos modos que o antecederam, e de forma particular, o modo de produção capitalista.
No jargão acadêmico, o modo de produção capitalista é um sistema socioeconômico caraterizado pela propriedade privada dos meios de produção (terra, capital, trabalho, por exemplo), a exploração do trabalho assalariado, e a busca do lucro como força guia primária. O sistema emergiu na Europa Ocidental durante a Revolução Industrial e desde então se espalhou globalmente (4).
Suas características chave (ou, pelo menos, as mais reconhecidas) são:
- Propriedade Privada dos Meios de Produção: Capitalistas possuem fábricas, máquinas, e terras, enquanto os trabalhadores somente possuem sua força-de-trabalho;
- Trabalho Assalariado: Trabalhadores vendem sua força-de-trabalho para capitalistas, permitindo os capitalistas explorarem seu trabalho para obtenção de lucro;
- Maximização do Lucro: Capitalistas almejam maximizar lucros ao minimizarem custos, aumentando a eficiência, e expandindo mercados;
- Comoditização do Trabalho: Trabalho é tratado como uma commodity (mercadoria), sujeita às leis da oferta e da demanda, e trabalhadores são forçados a competir por empregos e salários;
- Conflito de Classe: O modo de produção capitalista é baseado na exploração da classe trabalhadora (proletariado) pela classe capitalista (burguesia), levando a um inerente conflito de classes.
Fica patente que tais definições carecem de alguns reparos/atualizações, marcadamente pela natureza sociológica dos conceitos envolvidos (por exemplo, será que o conceito de classe social ainda tem relevância na interpretação da sociedade moderna?). Sem avançarmos no território da Sociologia, é possível nos atermos a algumas características. Sendo assim, podemos pinçar (a título de síntese) a questão dos meios de produção.
Em filosofia política, os meios de produção se referem aos ativos e recursos geralmente necessários que habilitam uma sociedade a se engajar na produção. Enquanto os recursos exatos incorporados ao termo podem variar, é amplamente concordado que eles incluem os fatores de produção clássicos (terra, trabalho e capital), bem como a infraestrutura geral e os bens de capital necessários à reprodução de níveis estáveis de produtividade (5).
Mas será que nas atuais Economia e Sociedade Digitais estes meios/fatores de produção clássicos são ainda preponderantes? Nós não podemos ignorar a importância de tais fatores, mas se colocarmos numa escala de importância, estes meios, que têm característica de tangibilidade estão perdendo posição para os chamados “ativos intangíveis”. Basta uma rápida observação da Figura 5 à frente para constatarmos esta mudança de percepção, a partir da superação da produtividade dos investimentos intangíveis, como participação no PIB, em relação à produtividade dos investimentos tangíveis.
E o que são estes ativos intangíveis? Eles são os principais ativos produzidos na Economia e Sociedade Digitais. Estes ativos são aqueles que vêm sendo produzidos pelas novas plataformas digitais (Figura 6) e que estão dando origem ao conceito que denominamos de o “novo ABC das TICs”: (A)nalytics + (B)ig Data + (C)Loud computing (6). Por analytics entendemos a descoberta, e posterior comunicação, de padrões, com significado, nos dados. Big Data é o termo dado para a explosão recente de geração de dados em volume, velocidade e variedade. Já a cloud computing é o processamento e o armazenamento de dados via Internet.
Uma palavra adicional há que ser dada ao novo papel da propriedade desses novos meios de produção. Apesar de ser um tema complexo (difícil de sintetizar), é possível afirmar que no contexto da Internet e das tecnologias digitais a propriedade migrou da posse de bens e serviços discretos (na era industrial) para uma realidade onde o acesso a um ativo ou serviço em rede é algo de mais significado econômico. No entanto, a propriedade digital evoluiu com o advento de tecnologias descentralizadas como blockchain e como a web 3.0, merecendo aprofundamentos em outra oportunidade. Tais aprofundamentos também nos levarão a questionar se estamos caminhando para um "tecnofeudalismo" (com a tecnologia criando uma "nova classe dominante", proprietária de capital tecnológico, e uma "massa de servos"), tal como defendido por Yanis Varoufakis (7).
Em resumo, neste novo contexto global estamos tratando de quatro economias que se interrelacionam: a Economia dos Dados, a Economia da Informação, a Economia do Conhecimento, e a Economia do Discernimento (decorrente das anteriores). Na próxima newsletter vamos apontar como estes novos ativos intangíveis (conhecimento, informação, dados e sabedoria/discernimento) estão moldando um novo modo de produção econômica.
Se sua empresa, organização ou instituição deseja saber mais sobre uma visão informacionista do avanço (ou progresso) socioeconômico, não hesite em nos contatar!
- Ricciotti, Francesco (2020). From value chain to value network: a systematic literature review. Management Review Quarterly. 70, 191-212.
- Esta lógica conceitual proporcionou a criação das “Global Value Chains - GVCs” (Cadeias Globais de Valor) pelas empresas multinacionais. Sua emergência nos anos 1990s se mostrou como um catalisador para mudanças aceleradas na paisagem do investimento e do comércio internacional, com consequências importantes para governos e empresas.
- https://creativante.com.br/newsletter/2020/a-economia-nao-esta-em-transformacao-digital-ela-ja-foi-transformada
- LEO -Assistente inteligente do browser Brave.
- https://en.wikipedia.org/wiki/Means_of_production
- Cavalcanti, J. C. (2016). https://www.igi-global.com/gateway/chapter/137478
- Varoufakis, Yanis (2023). Technofeudalism: What Killed Capitalism. Vintage Digital.